The Honourable Woman e a descontrução do papel feminino tradicional

Artigo apresentado no Seminário Internacional Desfazendo Gênero na Universidade Federal da Bahia, 4 a 7 de setembro de 2015

The Honourable Woman e a descontrução do papel feminino tradicional

Karla Schuch Brunet[1]
Karina Schuch Brunet[2]

Palavras-chave: feminismo, audiovisual, papel social, identidade

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Trata-se de um estudo de caso do seriado The Honourable Woman[3], dirigido por Hugo Blick para a BBC e SundanceTV, a partir da perspectiva feminista da Teoria Queer de Judith Butler e da teoria de papéis sociais de Ralf Dahrendorf.

Em The Honourable Woman, as mulheres são protagonistas de uma história sobre o Oriente Médio, na qual o cenário e a trama são feitos das questões que envolvem os aspectos empresariais, jogo de interesses políticos e chantagens profissionais. Não há romance, nem guerra. O que acontece são diferentes relações interpessoais fundadas na problemática da região e suas dificuldades econômicas e políticas.

No contexto da trama, verifica-se que os papéis sociais (DAHRENDORF, 1991) tradicionais são revisitados por uma posição forte da mulher no meio político e empresarial. As personagens protagonistas como a empresária condecorada pela coroa Britânica por promover a paz no Oriente Médio (Nessa), a chefe do serviço de inteligência britânico (Julia), a agente que faz conchavos políticos (Monica), a amiga que na verdade estava a serviço da causa palestina (Atika), dentre outras são todas femininas. E, fugindo dos estereótipos padrões das séries televisivas, nenhuma delas é movida por um amor desfeito ou está em busca de um grande romance. O que move as personagens são a participação política e econômica em um mundo globalizado, são crenças pessoais quanto ao governo e instituições, sejam estes inglês, palestino ou israelense.

As mulheres, no seriado, assumem papéis a priori designados como masculinos, pois são chefes tanto no âmbito público quanto privado, agindo com força e determinação sem se deixar levar por melancolias e sentimentalismos. Tal situação possibilita a análise do papel social na perspectiva de gênero e a sua subversão. A obra “Homo Sociologicus” de Ralf Dahrendorf (1991) discute a idéia de papel social, por meio do fato de que o homem não está na sociedade como indivíduo em si mesmo, mas sim contextualizado por relações sociais que estabelecem posições que a sociedade lhe confere. Assim sendo, dizer que uma determinada conduta é papel do homem ou da mulher, é uma designação social e não individual.

Nesta acepção desenvolvida por Dahrendorf (1991), o homem é um ser social, de modo que lhe cabe um conjunto de posições (familiares, profissionais, políticas, comunitárias, preferências pessoais, etc.) que lhes são ensinadas, passadas e apreendidas, gerando expectativas de comportamentos a partir dos papéis que decorrem destas posições. Se, então, há transgressão do papel previamente previsto, há, igualmente, sanção social, que no caso da mulher muitas vezes acaba na violência doméstica ou mesmo na exclusão da participação política ativa, como forma de segregação.

Dahrendorf apresenta o homo sociologicus como uma mediação entre o indivíduo e a sociedade, pois o entende enquanto portador de papéis sociais performados. Está justamente no ponto de interseção entre o indivíduo e a sociedade. O homo sociologicus quando se reúne em grupos passa a assumir papéis sociais de conduta já predeterminadas e perde sua individualidade e liberdade. No entanto, em contraponto à definição de indivíduo como uma combinação de papéis sociais, o autor coloca estes mesmos como o fato irritante da sociedade, esclarecendo que por trás de todos os papéis há o ator (indivíduo) não afetado por eles, que deles se desvincula e se torna quem realmente é. E o que realmente somos fica latente, subjugado pelo papel social, podendo vir à tona a qualquer momento, sendo, então, fato que incomoda e irrita a sociedade, pois gera insegurança e frustra as expectativas de comportamento advindas dos papéis sociais.

Desta forma, o que se percebe numa relação entre a teoria dos papéis sociais de Ralf Dahrendorf e as questões de gênero é um conflito entre a relação binária – masculino e feminino – e a individualidade de cada um e seu próprio corpo, independente de que papel venha a assumir na sociedade. Pode-se afirmar, neste sentido, que as identidades designadas socialmente aprisionam o eu – indivíduo – corpo, que pode ter outras concepções identitárias diversas daquela que lhe impõem.

E neste ponto, a análise proposta estabelece a interface entre o feminismo de Judith Butler (1999, 2004) e os papéis sociais, pois se coaduna com a ideia de que sexo e gênero são construções discursivas e que é preciso libertar o corpo do discurso social que o constitui. O fator irritante da sociedade pode ser compreendido justamente como a necessidade de emancipação e libertação do corpo na perspectiva de Butler. O que incomoda na sociedade na teoria de Dahrendorf é a individualidade que existe por trás, ou mesmo anterior, aos papéis sociais e que ficam, por eles, subjugadas.

A partir da noção de que não há uma natureza fixa do corpo na proposta de Butler, rompe-se com dualidade homem/mulher na perspectiva de sexo ou feminino/masculino na abordagem de gênero. Em The Honourable Woman, não temos claro se Nessa Stein (Maggie Gyllenhaal) é hetero, homo ou bisexual, se pode ser considerada feminina ou masculina. Em algumas cenas é forte e masculina, em outras, se atribui dos estereótipos da mulher, sendo “medrosa” e dorme numa sala de pânico, um casulo branco cercado por câmeras de vigilância. O papel da personagem quebra com muitas destas etiquetas de gênero e clichês. Ao mesmo tempo, ela tem o filho, fruto de estupro, escondido de sua vida pública e privada. Também, não deixa claro seu amor – ou possível romance – com Atika Halabi (Lubna Azabal). O que vemos em Nessa é alguém que atuou a vida toda para criar sua identidade, tentando apresentar uma “mulher honrada” para a sociedade inglesa e está no limite de transbordar, no momento de começar a decidir quem ela é.

Quando Simone de Beuvoir, em sua obra O Segundo Sexo, afirma que “ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEUVOIR, 1967, p.9), este tornar-se mulher pode ser tanto um ser fêmea quanto um macho, pois a liberdade e a individualidade do corpo deve ser prerrogativa e condição de ser no mundo. Ainda que a sociedade imponha uma pretensa identidade feminina e seus respectivos papéis sociais, há, na realidade, corpos que se significam em sua individualidade independentemente de um projeto cultural e social no qual estejam inseridos.

The Honourable Woman evidencia esta superação de identidades e papéis, ao protagonizar mulheres que tomam para si experiências independente de sexo e gênero. Elas simplesmente são indivíduos que se colocam na condição de agentes de uma postura política necessária para atingir os seus desejos. Cada personagem tem seu objetivo definido na trama e busca alcançá-lo. E para isto, o seriado supera alguns clichês da indústria televisiva e cinematográfica de apresentar mulheres fortes e determinadas, porém masculinizadas, como se esta fosse a única possibilidade de fugir de um papel tradicionalmente feminino.

Personagens como Dame Julia Walsh (Janet McTeer), que trabalha na chefia do MI5 (Inteligência Militar inglesa focada em assuntos internacionais) e Anjelica Hayden-Hoyle (Lindsay Duncan), uma empresária bem sucedida, não encaixam nos estereótipos dos seriados de mulheres “frágeis neuróticas” ou das “lésbicas fortes”. Julia não mede esforços para conseguir subir na carreira política, mesmo que precise chantagear, ser dura e dar as ordens do jogo. Ao mesmo tempo é sensual, elegante e dominadora. Já Anjelica, a mulher de Hugh Hayden-Hoyle (Stephen Rea), manteve-se todo o tempo na posição forte de exigir do ex-marido um posicionamento político e uma tomada de lados nos conflitos em Gaza. Deixou claro que só voltaria com o marido se ele mostrasse que é forte, que se arrisca, que é “homem”. Anjelica, ao mesmo tempo que pode parecer uma personagem frágil por ter sido traída pelo marido, ela tem um papel forte e não se vitimizou com o ocorrido. É um mescla de frágil e dura.

Em The Honourable Woman, as personagens não têm sua sexualidade discutida, nem mesmo como tema marginal na trama, de modo que se verifica a interação entre o corpo e a atitude sem traços de discussões de gênero ou sexo. As personagens são o que são e agem com naturalidade no contexto do enredo, sem que se possa especular sobre questões sexuais e afetivas. Aqui não se sabe se este tema não é o objeto da narrativa, ou se é uma constatação que as mulheres que estão nestas posições de poder, como a agente americana de assuntos internacionais, Monica Chatwin (Eve Best) e Frances Pirsig (Genevieve O’Reilly), o braço direito de Nessa, não possuam uma relação amorosa e familiar. O seriado mostra estas mulheres sempre sozinhas, não sabemos muito de suas vidas pessoais. Será que elas têm filhos? Romance? Ou será que para jogar neste jogo de poder elas devem abdicar da vida pessoal esperada de uma mulher?

Assim sendo, as mulheres assumem papéis políticos tradicionalmente masculinos sem, no entanto, se masculinizar, de modo que se pode dizer, de acordo com Judith Butler (1999, 2004), que se a política deixar de ser vista como um conjunto de práticas derivadas de interesses de sujeitos prontos – com papéis sociais definidos –,  pode-se ter novas configurações políticas independente de sexo biologicamente visto. A própria Butler, num documentário sobre sua vida/obra para o canal Arte[4], disse que não se encaixa nas categorias estabelecidas de gênero. Para a autora, sua identidade não pode ser catalogada como isto ou aquilo, para a autora “gênero é um campo de ambivalências”[5]. Acredita-se que as personagens de The Honourable Woman também não podem ser facilmente categorizadas quanto ao gênero, predomina aqui uma dualidade/ambivalência de gêneros.

Referências:

BEUVOIR, Simone. O Segundo Sexo. 2. A experiência vivida. Tradução de Sérgio Milliet. 2ª edição. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967

BUTLER, J. Gender Trouble. Feminism and the Subversion of Identity. New York and London: Routledge, 1999.

BUTLER, J. Undoing Gender. New York and London: Routledge, 2004.

DAHRENDORF, Ralf. Homo Sociologicus. Ensaio sobre a história, o significado e a crítica da categoria de papel social. Tradução de Manfredo Berger. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1991

[1] Professora da Programa Professora do IHAC/UFBA e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação de Cultura e Sociedade. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Ecoarte. karlab@ufba.br

[2] Professora do Curso de Direito da Faculdade Metodista de Santa Maria – RS. E-mail: karina.brunet@metodistadosul.edu.br

[3] Url do seriado: http://www.bbc.co.uk/programmes/p01z78nq

[4] URL do vídeo no Arte: http://www.arte.tv/guide/fr/033916-000/judith-butler-philosophe-en-tout-genre e o vídeo completo no Vimeo https://vimeo.com/20036048

[5] Nossa transcrição da fala de Butler: “I don’t belong well in any well stablished category… I’m also not someone who happily transcend them all… for me gender is a field of ambivalence.”

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