Cultura digital e geolocalização: a arte ante o contexto técnico-político (2010)

Abaixo artigo publicado nos anais do VI Enecult, em 2010.

BRUNET, Karla ; FREIRE, Juan . Cultura digital e geolocalização: a arte ante o contexto técnico-político. In: VI Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2010, Salvador. VI Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, 2010. (versão PDF)

 

Cultura digital e geolocalização:

a arte ante o contexto técnico-político

 

Karla Brunet*
Juan Freire
**

 

Resumo: A geolocalização e a cartografia se converteram em uma das práticas mais comuns na cultura digital. Os mapas digitais são interfaces dinâmicas pessoais que mediam as relações com nossas redes sociais e o território. Usuários e artistas trabalham com mapas graças à disponibilidade de serviços e tecnologias como Google Maps/Earth ou GPS em dispositivos móveis, que seguem em mãos de governos e corporações que controlam sua acessibilidade e condições de uso. Ainda que a maior parte dos projetos artísticos baseados em geolocalização passam por alto estas circunstâncias, aqui revisamos algumas iniciativas que supõem uma crítica destes condicionantes e discutem alternativas abertas, independentes e sustentáveis.

Palavras-chave: geolocalização, digital, mapas, mídia locativa

1.     Introdução

O desenvolvimento de aplicações e serviços de geolocalização de usuários e objetos, que podíamos englobar dentro da web 2.0, permitiu o surgimento e popularização de diversas práticas digitais. Os exemplos são diversos, mas poderíamos citar desde a geolocalização de fotografias em Flickr[1], Picassa[2] ou Panoramio[3] até o recente aparecimento da geolocalização em redes sociais, que se popularizou com a aparição de Foursquare[4]. Estes desenvolvimentos fazem sentido pela evolução paralela do hardware, dos dispositivos móveis de todo tipo que incluem capacidades de geolocalização e que permitem registrar o trajeto espacial de uma pessoa.

Os usuários de tecnologias digitais baseadas em geolocalização necessitam de três elementos essenciais: sistemas de posicionamento, infra-estrutura de dados geográficos e software/sites para gestão da informação. Esta internet geolocalizada se baseia em serviços e infra-estruturas que estão em mãos de corporações e poucos governos. Ainda que exista uma tendência crescente para a liberação de uma parte das infra-estruturas de dados, esta internet geolocalizada se baseia em tecnologias que estão em mãos de corporações e uns poucos governos. Isto gera, ou pode gerar no futuro, problemas com o acesso ou com a neutralidade do provedor. Igualmente, em muitas ocasiões não se dispõe dos metadados da informação geográfica, o que provoca a ilusão de que os mapas reflitam uma realidade. Assim, em ocasiões uma imagens aérea que imaginamos ser atual é, na realidade, o resultado da justaposição de várias fotografias feitas em diferentes momentos. Estes fatores afetam tanto na sustentabilidade de muitas práticas digitais (já que em qualquer momento se pode produzir uma mudança na disponibilidade ou de condições de uso) como a confiança e transparência dos próprios dados utilizados.

Ao mesmo tempo, uma série de projetos de ativistas e artistas trabalham criticamente sobre estes problemas gerando um estado de opinião sobre esta questão. Por outra parte, diversos projetos colaborativos atuam na direção de solucionar esta limitação mediante o desenvolvimento de infra-estruturas públicas e abertas.

2.     GPS, satélites e GIS

2.1.  História da tecnologia GPS

Os sistemas de geolocalização estão baseados principalmente na tecnologia GPS (Global Positioning System), um sistema de navegação por satélite dependente do governo norte-americano. Recentemente, o desenvolvimento de sistemas de redes sem fio de dados e de telefonia celular, wifi, 3G e bluetooth permitem também posicionar o dispositivo desde que este se conecte a um usuário mediante triangulação. Em todo caso, estes sistemas alternativos não apresentam a mesma cobertura nem permitem a mesma precisão de dados como os baseado em GPS.

O sistema GPS foi desenvolvido pelo departamento de defesa dos EUA em um projeto que teve início em 1972 mas que somente em 1993 tornou-se totalmente operacional e, atualmente,  conta com uns 30 satélites que proporcionam uma cobertura global. Igualmente, existem sistemas alternativos como o GLONASS russo (iniciado na época da União Soviética), e outros na China, Índia ou Japão, mas em nenhum destes casos contam com uma cobertura global. A União Européia está desenvolvendo o sistema Galileo, iniciado em 2007, e que tem previsto seu lançamento operacional em  2014. É provável que no futuro seja possível aceder, desde um mesmo dispositivo, aos sistemas GPS e Galileo simultaneamente.

Quando o sistema GPS foi aberto aos usos civis, o governo americano introduziu um protocolo de “disponibilidade seletiva” que inseria erros aleatórios no  posicionamento com a finalidade de evitar que outros usuários pudessem lograr a precisão necessária para usos militares. Nesta fase, as localizações frequentemente tinham erros de uns 50 metros. Como solução para este problema, diferentes governos e provedores comerciais desenvolveram sistemas diferenciais (DGPS) que media em tempo real, mediante estações em terra, o erro introduzido e corrigiam com esta informação a posição proporcionada pelos dispositivos de GPS. Estas estações DGPS proporcionavam precisões de menos de um metro, o que permitiam, por exemplo, usos científicos que requeriam posicionamentos extraordinariamente precisos.

Além dos usos militares, como os do exército americano durante a primeira guerra do Golfo, o êxito crescente dos usos civis provocou que a administração de Clinton declarasse, em 1996, a tecnologia GPS como um sistema de duplo uso: militar e civil. Foi a disponibilidade dos sistemas de DGPS a que permitiu que finalmente, em maio de 2000, a disponibilidade seletiva de dados fosse eliminada, o que possibilitou que qualquer usuário pudesse aceder ao sinal não degradado dos satélites. O sistema de disponibilidade seletiva podia, em teoria, voltar a ser ativado em qualquer momento, ainda que o impacto que provocaria sobre os usuários (como serviços logísticos) que usam o GPS torna improvável que se tome uma decisão deste tipo. De qualquer forma, o GPS é uma tecnologia sob o controle governamental e militar de um único país, os Estados Unidos. A previsível integração de diversos sistemas, como GPS e Galileo, incrementaria o número de atores governamentais mas não mudaria o sistema de controle.

2.2.  Infra-estruturas de dados geográficos

Entender o significado da localização de um objeto ou uma pessoa requer poder analisar e visualizar suas relações com outros elementos espaciais e, portanto, situar as posiciones geográficas em um mapa onde aparecem outros elementos territoriais. A criação deste contexto espacial necessita tanto de uma infra-estrutura de bases de dados geográficas como de sistemas de gestão da informação.

Existem múltiplas fontes de informação geográfica: fotografias aéreas, imagens de satélite, dados topográficos… Estas infra-estruturas softs pertenceram tradicionalmente a governos e provedores comerciais ainda que lentamente começaram a se abrirem aos usuários. A origem disso podíamos dizer que foi em 1966, quando Steward Brand iniciou uma campanha para que a NASA liberasse a primeira imagem do planeta Terra visto do espaço. Esta imagem mudou nossa percepção do planeta onde vivemos e iniciou um longo e inacabado debate sobre o acesso e uso público da informação procedente dos sistemas de observação terrestre. Nos últimos anos, muitas administrações públicas e organismos internacionais começaram a oferecer acesso aberto a suas bases de dados. Iniciativas como a recente data.gov[5], da administração Obama, abriu um debate público para que exista cada vez mais uma maior quantidade de informação geográfica aberta na Internet.

2.3.  Sistemas de informação geográfica

A última peça do quebra-cabeças dos usos da geolocalização são os conhecidos como sistemas de informação geográfica (GIS – Geographic Information Systems) que englobam qualquer tipo de software que maneje, analise, modela e visualize dados  geo-referenciados. A origem dos GIS pode-se dizer que foi em 1962, no Canadá, empregado para a cartografia de usos do solo e florestais. Na década de 1980, aparecem diversas empresas que comercializavam GIS, dentre elas destaca-se a californiana ESRI, que atualmente conta com um 30% da quota de mercado[6] e é  capaz de estabelecer padrões para tipos de dados e protocolos de processamento de informação. A política de ESRI seguiu o modelo de oligopólio de software, baseado em umas licenças caras e pacotes de grande complexidade técnica. Como conseqüência, os GIS permaneceram restringidos a especialistas que contem com recursos suficientes. Atualmente, existem numerosas alternativas comerciais e de software livre[7], mas estas seguem sendo minoritárias. Ao mesmo tempo, os serviços web de fácil uso e que cobrem as necessidades essenciais da maior parte dos usuários, conseguiram mudar um pouco esta situação.

3.     Uma cultura digital de geolocalização: a popularização do Google Maps e Google Earth.

A geolocalização se tornou em uma prática comum na Internet e em particular nas mídias sociais. Redes sociais, blogs, sites de fotografia (como Flickr ou Panoramio), ou de vídeos tendem a incorporar informação geográfica nos seus metadados ou mediante mapas incrustados procedentes de serviços como Google Maps. Por outra parte, há um grande número de celulares móveis 3G que permitem uma conectividade contínua e ubíqua, encorparam sistemas de posicionamento que estão cada vez mais populares. Por exemplo, as aplicações para iPhone baseadas em geolocalização que permite registrar o rastro espacial de uma pessoa ou consultar serviços próximos se multiplicam e diversificam. Foursquare, uma rede social baseada na geolocalização, está se convertendo em uma das aplicações mais populares tanto em computadores como, especialmente, para usuários de celulares.

Os usuários consumem e criam continuamente mapas: para consultar endereços, para orientarem-se nas cidades, para buscar lugares de interesse em sua proximidade, para encontrar “amigos” próximos, para alugar ou comprar apartamentos, para recomendar bares ou shoppings… Serviços como Streetview do Google Maps fazem que a experiência espacial digital seja cada vez mais próxima a que se produz no espaço público. Os mapas digitais se transformaram em uma interface da internet móvel na medida em que as pessoas se relacionam através de seu território.

3.1.  Google Maps / Google Earth

Google se converteu, desde 2004, em um elemento chave da geolocalização ao  introduzir Google Maps/Google Earth. O primeiro é um serviço na web de cartografia enquanto que o segundo é um sistema de visualização e manuseio de informação geográfica. Em realidade, ambos, que paulatinamente vão incorporando novas utilidades, se transformaram em uma combinação de GIS e infra-estrutura de dados  geográficos básicos de fácil acesso e com poucos requerimentos de aprendizagem. Ainda que outras grandes corporações, como Microsoft o Yahoo! contam com  serviços   similares, foram as ferramentas de Google as que geraram uma base de usuários que acabou por trasladar aos amadores a cartografia digital.

Sua enorme popularidade se firmou com o acesso a API[8] aberta que provocou o desenvolvimento de inumeráveis mashups[9] por terceiros. Por outra parte, incorporam imagens de satélite e fotografias aéreas de alta resolução, porém, as de maior qualidade estão limitadas a zonas de interesse (por exemplo, grandes cidades, áreas turísticas). Além disso,  problemas com  possíveis usos terroristas leva a degradar a qualidade da imagem ou inclusive a eliminar áreas sensíveis militarmente. As imagens de Google Maps/Earth produzem a ilusão de sua contemporaneidade quando em realidade desconhecemos, pelo menos sem aceder aos metadatos, sua data de aquisição e sua possível manipulação prévia.

De qualquer modo, os avances tecnológicos descritos anteriormente que facilitam o acesso a dados e ferramentas permitiram o desenvolvimento de práticas de cartografia amadora ou cidadã como declarou Goodchild (2007), que indicava os usuários como provedores de informação geográfica como “sensores” vivos e móveis que registram objetos e processos que ocorrem no território; ainda que neste momento, a geolocalização e os mashups da web 2.0 eram mais promessas que realidades estendidas (Hardley, 2007).

Já em 2007, as aplicações cartográficas abertas eram mais freqüentes nos EUA devido a que suas políticas públicas favoreciam o uso aberto da informação geográfica, enquanto que as legislações de outros países “protegem” essas infra-estruturas ou as consideram como fonte de ingresso de verbas pela venda de serviços ou produtos (Hardley, 2007).

3.2.  OpenStreetMap, uma alternativa de cultura livre

Ainda que existam muitos projetos abertos e colaborativos baseados em ferramentas de geolocalização, são muito mais escassos aqueles destinados a gerenciar a própria infra-estrutura geográfica com exceção dos casos das aplicações GIS de software livre.

O projeto OpenStreetMap (OSM) representa neste sentido a iniciativa mais interessante tanto por seus objetivos como por suas conquistas. OSM pretende desenvolver uma cartografia digital e aberta da Terra e surge, em 2004, como uma resposta de um grupo de estudantes britânicos ao serviço público Ordnance Survey que pretendia lhes cobrar uma quantidade muito elevada por usar uma fotografia aérea de um determinado lugar. Utilizando dispositivos GPS, o coletivo que formou OSM criou uma cartografia urbana alternativa, aberta e de alta qualidade. Este, atualmente, proporciona gráficos vetoriais (ruas, estradas…) e imagens renderizadas a qualquer usuário utilizando uma licença Creative Commons Attribution-ShareAlike[10]. O OSM é construído a partir das contribuições de usuários que registram seus tracks de GPS e, também, de doações de dados e cartografia. Em março de 2010, contavam com mais de 229 mil usuários[11].

O êxito do OSM se converteu, desde sua criação, em uma referência no âmbito dos dados geo-espaciais. Seus mapas urbanos de zonas em conflito ou de difícil acesso ou observação mostram, por exemplo, maior detalhe e qualidade que as alternativas comerciais de Google, Yahoo! o Microsoft[12]. Além do mais, Yahoo! (em particular no Flickr) começou a utilizar OSM como complementar a sua própria cartografia e, também, lhes fornece imagens aéreas[13], o que mostra um modelo alternativo de desenvolvimento e cooperação  entre provedores comerciais e projetos colaborativos.

O resultado da popularização de ferramentas como Google Maps/Earth ou de projetos como OSM é o surgimento de uma série de práticas cartográficas digitais. Criou-se o termo neogeografia para identificar estas práticas desenvolvidas a margem ou em paralelo a atividade dos geógrafos e cartógrafos profissionais. Estes usos são viáveis graças a disponibilidade de ferramentas e de dados abertos e gratuitos que se baseiam em sua maioria em projetos colaborativos (Goodchild, 2009; Hudson-Smith, Crooks et al., 2009; Freire e Onrubia, 2010).

Gorman (2008) realiza uma descrição da história recente da cartografia na web  identificando una série de tendências: a apertura de dados geográficos por parte dos governos e o desenvolvimento de serviços comerciais, especialmente aqueles de Google, e de projetos colaborativos como OpenStreetMap. O autor propõe que a utilidade e velocidade do desenvolvimento de aplicações baseadas na geolocalização cresce exponencialmente com o volume de dados disponíveis. Por esta razão, é especialmente relevante estabelecer uma infra-estrutura de dados comuns e ferramentas que permitam os usuários facilmente remixar a informação. Esta é a idéia básica do projeto Geocommons[14]:

GeoCommons – a geographic data platform that allows non-technical users to easily combine their data with data from disparate third party sources on to a single map. The crux of it all lies in the ability to harness the data in an intuitive way that enables the average user to solve problems through maps…(Gorman, 2008)

Por outra parte, alguns autores (Hudson-Smith, Batty et al., 2009; Hudson-Smith, Crooks et al., 2009) fizeram uma revisão detalhada das diferentes ferramentas para criar mashups de mapas online mediante mecanismos de crowdsourcing[15]. Estes observam uma tendência paradóxica: se, nos primeiros anos, surgem os usos amadores, neste momento, já existem usos dos métodos e técnicas da neogeografia por parte de profissionais e cientistas, em particular, para visualização de dados.

4.     Cartografia artística e experimental

Uma vez expostas as implicações técnicas e políticas da geolocalização na cultura digital, vale salientar as cartografias e geolocalizações construídas como  forma de arte ou experimentação. Observa-se que esta cultura de localização, tanto no digital quando de forma analógica, é preocupação de artistas e ativistas.

Nos últimos anos, publicaram-se diversos catálogos de arte e cartografia, como por exemplo: “You are here: personal geographies and other maps of the imagination” (Harmon, 2004), “Else/where–mapping: new cartographies of networks and territories” (Abrams e Hall, 2006), “An Atlas of Radical Cartography” (Mogel e Bhagat, 2008), “Experimental geography” (Thompson, 2008), “The map as art: contemporary artists explore cartography” (Harmon, 2009). No Brasil, também, percebe-se a popularização do interesse por cartografias experimentais e artísticas. Por exemplo, em 2009, o 4º Festival Internacional de Arte em Mídias Móveis teve “Geografias Imaginárias” como tema central de seus simpósios e exposições em 4 capitais brasileiras.

Muitos dos catálogos acima citados apresentam uma coletânea de mapas pessoais, artísticos, ativistas, experimentais e/ou contestadores. Estes mapas são, freqüentemente,  uma resposta a uma criação monopolista e controladora de cartografias oficiais. Com a facilidade de acesso e uso das tecnologias digitais e locativas,  ferramentas que anteriormente eram somente acessíveis a governantes e grandes empresas, tornaram-se populares e notou-se um boom de projetos cartográficos. Ao mesmo tempo, é importante observar que a preocupação por mapeamento não é característica da cultura digital, mapas artísticos são criados desde os desenhos nas cavernas, hoje em dia, houve somente um aumento na produção e difusão destes mapas.

November, Camacho-Hubner e Latour (2009) sugerem que com as tecnologias digitais houve uma mudança na forma com que construímos e assimilamos mapas. Para os autores, existe um diferencial entre os mapas antes do computador e os mapas depois do computador, e estes últimos são considerados mais como uma plataforma de navegação do que uma simples representação do espaço. A importância destas plataformas de navegação está em que facilmente podemos fazer um sinal no mapa e/ou no território, e marcamos não somente um ponto fixo mas, também, trajetórias. Os mapas na cultura digital se baseiam em maior parte na interpretação navegacional do que interpretação mimética.

Consideramos que o papel do artista, nesta fase da cultura digital, a da popularização dos GPSs, dos mapas ditigitalizados e das fotos satélites disponibilizadas na rede, é de transgressão, de desconstrução dos mapas oficiais e de experimentação. Portanto, cabe a arte mostrar novas possibilidades de visualização das informações espaciais para não cairmos numa homogeneização onde todos os mapas possuem a mesma cara, a do Google.

Este mapa artístico ou experimental se aproxima muito ao mapa descrito por Deleuze e Guattari (2000) quando teorizando sobre o rizoma.

O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido, adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação política ou como uma mediação. (Deleuze e Guattari, 2000: 22)

O mapa artístico é um mapa aberto a criações, interpretações, novas visões, novas formas de visualização e compreensão do espaço. E, especialmente, o mapa na cultura digital é continuamente modificado, muitos deles não possuem uma forma final, fechada, estão em crescimento ininterrupto.

5.     Arte como crítica a Google Maps/Earth

As manifestações artísticas relacionadas com geolocalização vão além da criação de mapas, alguns artistas preocupados com as questões políticas e técnicas dos sistemas de geolocalização começaram a desenvolver projetos que, de alguma forma, questionam estes sistemas, especialmente Google Maps/Earth por sua monopolização na cultura digital.

A instalação urbana Map (2006-2009), idealizada por Aram Bartholl[16], faz um questionamento crítico sobre as representações no Google Maps. Neste trabalho, Bartholl instalou, em uma cidade na Alemanha, gigantescos sinais, os “pingos” iguais aos marcadores do Google com a letra “A”. O tamanho destes marcadores construídos em madeira e tecido é maior que 6 metros e corresponde ao seu tamanho no mapa online quando este é visto no seu zoom máximo. Ao serem instalados em zonas urbanas, estes marcadores remetem a uma indagação da fronteira do que é físico e do que é virtual. Estamos acostumados a ver este tipo de sinalização no mapa do Google, até mesmo na foto satélite do mapa eles são comuns, fazem parte da paisagem. Entretanto, no momento em que vemos este marcador em uma rua, parque, calçada, achamos lúdico e perturbador.

Figura 1. Aram Bartholl Map. (Fonte: http://www.datenform.de/mapeng.html)

Os marcadores da instalação produzem uma desconstrução da representação do espaço físico no mundo virtual, funcionam como objetos de subversão deste espaço que culturalmente estamos acostumados a navegar.

Outro projeto que propõe um questionamento aos mapas de Google e sua soberania é “Lugares que no existen (Google Earth 1.0)” de Isaki Lacuesta e Isa Campo. Estes artista espanhóis fizeram um vídeo de lugares que visitaram e que não aparecem em Google Earth. A obra é uma vídeo instalação de duas projeções onde em uma tela é mostrado imagens do em Google Earth e a outra vídeos gravados nas ruas nos mesmos lugares das imagens por satélite. A instalação propõe um comparativo de dois pontos de vista do mesmo lugar, o objetivo é mostrar as falhas destes mapas e imagens por satélites que cremos como realidade. Os lugares escolhidos por Isaki e Isa para retratar esta comparação são, por exemplo, um campo de reclusão de imigrantes em Austrália ou uma base militar na Rússia.

Indo além na discussão de lugares que não aparecem nos mapas, o projeto/livro “Blank Spots on the Map: The Dark Geography of the Pentagon’s Secret World”, do artista e geógrafo Trevor Paglen, apresenta atividades clandestinas da CIA e do exército americano. Neste projeto, Paglen mapeia lugares que não aparecem nos mapas oficiais, são lugares que não existem para o conhecimento público, que aparecem no orçamento público americano com espaços em branco, sem detalhamentos dos números dos gastos do governo americano.

Paglen também criou um projeto chamado “Limit Telephotography”[17] onde ele fotografa base militares que estão localizadas em lugares remotos. Como não é permitida a aproximação a estes lugares, esta fotos são feitas a distância, com câmeras e telescópios que possuem uma lente com distância focal entre 1300mm e 7000mm.

Figura 2. Trevor Paglen – Large Hangars and Fuel Storage.
(Fonte: http://www.paglen.com/pages/projects/nowhere/telephotos/large%20hangars.htm)

Com estes exemplos, pode-se destacar que alguns artistas estão preocupados com o empoderamento bélico de nossos espaços, cartografias e representações geográficas, e buscam, através da arte, apresentar novas formas de representação deste espaço, bem como, mostrar visões do que é escondido, não-mostrável ou secreto.

6.     Considerações finais

As novas cartografias digitais, que alguns autores (Aguiton, Cardon et al., 2009) denominam de “living maps”, são instrumentos e interfaces dinâmicas que proporcionam a combinação de informação geral com a de interesse pessoal. No entanto, estes mapas alteram a forma na qual nos relacionamos e como usamos o espaço. Como, por exemplo, como organizamos nossa mobilidade e nossas inter-relações sociais em tempo real sobre um mapa ou como compartilhamos informação geolocalizada que nos ajuda a tomar decisões cotidianas (desde onde comer a informações sobre as condições de uma estrada).

Por outra parte, estes mapas e dados geolocalizados publicados pelos cidadãos oferecem grandes oportunidades para o controle. A ausência de regras claras com relação à privacidade e propriedade de dados (em especial dos dados gerados pelos usuários) provocam grandes desconfianças sobre os usos potenciais da informação geolocalizada. Realmente, estes dados já estão sendo aproveitados em estudos científicos de claro interesse comercial sobre os padrões de mobilidade e uso do espaço a partir dos usos da telefonia celular. Outra forma de controle teria um componente mais claramente político ao proporcionar a possibilidade de uma vigilância institucional praticamente ubíqua a partir das trilhas digitais dos cidadãos.

Concluindo, observamos que os oligopólios baseados em sistemas fechados provocam uma geografia convencional ligada aos interesses das organizações (empresas, governos) que controlam os dados e ferramentas. Ao mesmo tempo, os sistemas abertos permitem o desenvolvimento de uma cartografia cidadã, de uma geografia experimental, de projetos artísticos que criticam as visiones convencionais e permitem a criatividade na análise e resolução de problemas. Ainda assim, estes projetos abertos se mantém sob infra-estruturas e ferramentas que não são realmente abertas e, portanto, existe um evidente risco de manipulação em sua sustentabilidade.

7.     Bibliografia

ABRAMS, J.; HALL, P. Else/where–mapping : new cartographies of networks and territories. Minneapolis, MN: University of Minnesota Design Institute, 2006.

AGUITON, C. et al. Living Maps. New data, new uses, new problems. First International Forum on the Application and Management of Personal Electronic Information, October 12-13, 2009 . : MIT, Cambridge, MA, 2009.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs – Capitalismo e esquizofrenia. Tradução de ANA LÚCIA DE OLIVEIRA; NETO, A. G. Rio de Janeiro: Editora 34, 2000.

FREIRE, J.; ONRUBIA, D. V. Prácticas cartográficas cotidianas en la cultura digital. Diálogos de la Comunicación. Monográfico “Cultura Digital y vida cotidiana en Iberoamérica: Una revisión crítica más allá de la comunicación” (Coordinadores: Edgar Gómez Cruz y Tíscar Lara) [S.I.],  2010.

GOODCHILD, M. Citizens as sensors: the world of volunteered geography. GeoJournal [S.I.], v. 69, n. 4, p. 211-221,  2007.

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GORMAN, S. Creating maps for everyone and network effects for the data driving them. receiver magazine. v. 21: Vodafone, 2008.

HARDLEY, M. The city in the age of web 2.0 a new synergistic relationship between place and people – Information, . Available at:

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HARMON, K. A. You are here : personal geographies and other maps of the imagination. 1st. ed. New York: Princeton Architectural Press, 2004.

______. The map as art : contemporary artists explore cartography. New York: Princeton Architectural Press, 2009.

HUDSON-SMITH, A. et al. Mapping for the Masses: Accessing Web 2.0 Through Crowdsourcing. Social Science Computer Review [S.I.], v. 27, n. 4, p. 524-538,  2009.

______. NeoGeography and Web 2.0: concepts, tools and applications. . 2009;3(2):. Available at: . Journal of Location Based Services [S.I.], v. 3, n. 2, p. 118-145,  2009.

MOGEL, L.; BHAGAT, A. (Eds.) An Atlas of Radical Cartography. Los Angeles, CA: Journal of Aesthetics & Protest Press, p.157 p.ed. 2008.

NOVEMBER, V. R. et al. The Territory is the Map – Space in the Age of Digital Navigation. 2009. Disponível em:<http://www.bruno-latour.fr/articles/article/117-MAP-SUISSE-3rd-BL.pdf>. Acesso em: 2009.

THOMPSON, N. Experimental geography. New York: Melville House, Independent Curators International, 2008.

 


* Professora do IHAC/UFBA e do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação de Cultura e Sociedade. Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Poéticas Tecnológicas.

** Professor do RMyP/UDC e pesquisador Economia Digital da EOI, Espanha.

[8] Definição da Wikipédia: “API, de Application Programming Interface (ou Interface de Programação de Aplicativos) é um conjunto de rotinas e padrões estabelecidos por um software para a utilização das suas funcionalidades por programas aplicativos que não querem envolver-se em detalhes da implementação do software, mas apenas usar seus serviços”. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/API

[9] Definição da Wikipédia: “Um mashup é um website ou uma aplicação web que usa conteúdo de mais de uma fonte para criar um novo serviço completo. O conteúdo usado em mashups é tipicamente código de terceiros através de uma interface pública ou de uma API. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Mashup

[15] Neologismo que combina crowd e outsourcing  e que identifica o desenvolvimento de uma tarefa mediante a integração de pequenas contribuições de múltiplos usuários (crowd) que não estão associados a umna orgânicao formal (outsourcing). Mais informações na wikipédia em: http://pt.wikipedia.org/wiki/
Crowdsourcing

[16] Url do artista/instalação: http://www.datenform.de/mapeng.html

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